O jeito como ele me olhava, doutor. Aquele olhar obsceno, doutor. Eu me sentia nua, perdida, violentada. Era todo dia, doutor. Quando eu vinha chegando ele já estava de pé na porta da oficina. Ele sabia a hora em que eu passava. Era de manhã e de tarde. Na ida e na volta. Já de longe ele começava a tirar minha roupa, doutor. Eu não sabia o que fazer, pra onde olhar. E, depois que eu passava, seus olhos me queimavam, aquele olhar obsceno, doutor, subindo pelas minhas coxas, queimando minhas costas, doutor. Todo dia, doutor. Chegava em casa transtornada, enrubescida, sem jeito... Meu marido começou a desconfiar, doutor. Parecia que eu vinha de um encontro, doutor. Meu marido até insinuou, “que jeito é esse? Parece que fez sexo...”. E parecia mesmo, doutor. Pelo menos era o que eu sentia. Não tinha como disfarçar. Meu marido ameaçou, “se te pego com alguém...”. Mas nem podia ser, não é, doutor? Eu ia e vinha, não ficava fora de casa, era só passar na porta da oficina, era só sentir aquele olhar obsceno avançando nos meus seios, contornando meu ventre, descendo, descendo... Já não conseguia fazer sexo com meu marido, doutor. Lembrava dele, daqueles olhos obscenos me despindo, daquela promessa de loucura, doutor. Acordava de noite, levantava da cama, ardia de desejo, doutor. Aquilo ia acabar com meu casamento, com minha família, com minha vida, doutor. Eu tinha que dar um jeito, doutor. O primeiro tiro foi no peito. Aquele olhar de surpresa, doutor, “o que ela está fazendo?”, nunca mais vou esquecer. Não era obsceno, doutor, era de espanto, susto, desespero. Ele dobrou os joelhos. Agora seu olhar era de súplica, doutor, parecia que ia rezar. Dei mais três tiros, assim a esmo, pra garantir. Pra não me arrepender na última hora. O senhor entende, não é, doutor? Foi legítima defesa, doutor...
Sobretudo ou nada
Neste blog eu conto histórias, falo de assuntos sérios e banais, prático algumas crônicas e, às vezes, até me atrevo numa ou noutra poesia. Enfim, neste blog eu faço a coisa que mais gosto na vida: escrever.
terça-feira, 19 de fevereiro de 2019
Aquele olhar obsceno
O jeito como ele me olhava, doutor. Aquele olhar obsceno, doutor. Eu me sentia nua, perdida, violentada. Era todo dia, doutor. Quando eu vinha chegando ele já estava de pé na porta da oficina. Ele sabia a hora em que eu passava. Era de manhã e de tarde. Na ida e na volta. Já de longe ele começava a tirar minha roupa, doutor. Eu não sabia o que fazer, pra onde olhar. E, depois que eu passava, seus olhos me queimavam, aquele olhar obsceno, doutor, subindo pelas minhas coxas, queimando minhas costas, doutor. Todo dia, doutor. Chegava em casa transtornada, enrubescida, sem jeito... Meu marido começou a desconfiar, doutor. Parecia que eu vinha de um encontro, doutor. Meu marido até insinuou, “que jeito é esse? Parece que fez sexo...”. E parecia mesmo, doutor. Pelo menos era o que eu sentia. Não tinha como disfarçar. Meu marido ameaçou, “se te pego com alguém...”. Mas nem podia ser, não é, doutor? Eu ia e vinha, não ficava fora de casa, era só passar na porta da oficina, era só sentir aquele olhar obsceno avançando nos meus seios, contornando meu ventre, descendo, descendo... Já não conseguia fazer sexo com meu marido, doutor. Lembrava dele, daqueles olhos obscenos me despindo, daquela promessa de loucura, doutor. Acordava de noite, levantava da cama, ardia de desejo, doutor. Aquilo ia acabar com meu casamento, com minha família, com minha vida, doutor. Eu tinha que dar um jeito, doutor. O primeiro tiro foi no peito. Aquele olhar de surpresa, doutor, “o que ela está fazendo?”, nunca mais vou esquecer. Não era obsceno, doutor, era de espanto, susto, desespero. Ele dobrou os joelhos. Agora seu olhar era de súplica, doutor, parecia que ia rezar. Dei mais três tiros, assim a esmo, pra garantir. Pra não me arrepender na última hora. O senhor entende, não é, doutor? Foi legítima defesa, doutor...
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019
Em busca da identidade
Disseram que era para ele esperar ali. Mas isso já fazia pelo menos umas quatro
horas. E tudo o que ele queria era apenas a segunda via da carteira de identidade.
Não sabia onde a deixara. Procurara por toda parte. Em vão. Por isso resolvera
comparecer à Central de Segunda Via de Identidades Perdidas. Acreditava que
seria fácil. Disseram para ele que iriam fazer algumas perguntas. Era só responder
com sinceridade. Dizer a verdade. E lhe dariam uma segunda via. E ele teria sua
identidade de volta.
Na noite anterior, quase na porta de casa, fora parado por uma blitz do Comando de Verificação de Identidades, CVI. Pediram sua identidade. Só então se dera conta de que há tempos não a usava. Não estava com ele, naquele momento, justificou. Mas garantiu que tinha uma identidade. Morava logo ali. Era só procurar no passado. Por sorte um vizinho que passava naquele momento garantiu ao gendarme que o conhecia. Não sabia se ele tinha identidade, mas morava ali mesmo, desde o tempo da Grande Esperança. O gendarme, desconfiado, entregou-lhe um folheto, com a recomendação expressa de que se apresentasse, no dia seguinte, ao Comitê Central da CVI, com sua verdadeira identidade.
Foi o que ele fez. E ali estava, há pelo menos umas quatro horas, enquanto pessoas passavam de um lado pro outro, no imenso corredor, algumas fardadas, outras, não. Finalmente, uma moça de camisa social branca, saia azul marinho, justa, que descia até o meio das canelas, cabelos negros presos num elegante coque, óculos redondos de aro de tartaruga, surgiu numa das portas do imenso corredor e fez sinal para que a acompanhasse.
Entrou numa grande sala, com uma enorme mesa de madeira no centro e mais nada em volta. A moça fez sinal para que ele sentasse na única cadeira existente. Esperou.
Passados alguns minutos, entrou um General de Infantaria, com uma belíssima farda azul com debruns vermelhos, até parecia um Marechal. Perguntou, com ar amigável, o que ele estava fazendo ali, meu rapaz. Ele contou tudo de novo. A perda da identidade. O gendarme desconfiado. A busca pela segunda via.
O Marechal, ou General, ou seja lá que autoridade era ou pensava que fosse, olhou- o com profunda comiseração: “não existe segunda via, meu rapaz. Identidade é uma só. Uma vez perdida, não tem volta...”.
E o que eu faço agora, ele perguntou, ou pensou que perguntou.
Com o tempo, acostumou-se a viver sem identidade. Conheceu outros iguais, que também viviam sem identidade. Para dizer a verdade, a maioria...
Na noite anterior, quase na porta de casa, fora parado por uma blitz do Comando de Verificação de Identidades, CVI. Pediram sua identidade. Só então se dera conta de que há tempos não a usava. Não estava com ele, naquele momento, justificou. Mas garantiu que tinha uma identidade. Morava logo ali. Era só procurar no passado. Por sorte um vizinho que passava naquele momento garantiu ao gendarme que o conhecia. Não sabia se ele tinha identidade, mas morava ali mesmo, desde o tempo da Grande Esperança. O gendarme, desconfiado, entregou-lhe um folheto, com a recomendação expressa de que se apresentasse, no dia seguinte, ao Comitê Central da CVI, com sua verdadeira identidade.
Foi o que ele fez. E ali estava, há pelo menos umas quatro horas, enquanto pessoas passavam de um lado pro outro, no imenso corredor, algumas fardadas, outras, não. Finalmente, uma moça de camisa social branca, saia azul marinho, justa, que descia até o meio das canelas, cabelos negros presos num elegante coque, óculos redondos de aro de tartaruga, surgiu numa das portas do imenso corredor e fez sinal para que a acompanhasse.
Entrou numa grande sala, com uma enorme mesa de madeira no centro e mais nada em volta. A moça fez sinal para que ele sentasse na única cadeira existente. Esperou.
Passados alguns minutos, entrou um General de Infantaria, com uma belíssima farda azul com debruns vermelhos, até parecia um Marechal. Perguntou, com ar amigável, o que ele estava fazendo ali, meu rapaz. Ele contou tudo de novo. A perda da identidade. O gendarme desconfiado. A busca pela segunda via.
O Marechal, ou General, ou seja lá que autoridade era ou pensava que fosse, olhou- o com profunda comiseração: “não existe segunda via, meu rapaz. Identidade é uma só. Uma vez perdida, não tem volta...”.
E o que eu faço agora, ele perguntou, ou pensou que perguntou.
Com o tempo, acostumou-se a viver sem identidade. Conheceu outros iguais, que também viviam sem identidade. Para dizer a verdade, a maioria...
segunda-feira, 14 de janeiro de 2019
Mulheres da vida
Descia do ônibus na confluência das avenidas Cásper Libero, Senador Queiroz e
Ipiranga. Pegava a rua dos Andradas, atravessava a Aurora, a Vitória, a praça Júlio
Prestes, continuava pela Dino Bueno até chegar à Eduardo Prado, mais ou menos
doze quarteirões depois, onde ficava a firma em que trabalhava como auxiliar de
escritório. De manhã cedinho, lá pelas sete, sete e meia, cruzava com bêbados,
mendigos, malandros, e uma ou outra prostituta, ainda tentando conseguir algum
freguês retardatário. Àquela hora, ninguém ligava muito pra ele, adolescente, indo
para o trabalho, de terno e gravata, sem olhar para os lados. Ele também não
prestava muita atenção em ninguém, ainda com sono, apressado, doze quarteirões,
um longo caminho, sem tempo a perder, até mesmo para alongar os olhos em
direção a um ou outro par de coxas sobreviventes àquela hora.
Já na volta, entre cinco e meia e seis da tarde, doze quarteirões, a caminho do ponto do ônibus que o levaria para o colégio onde estudava à noite, a história era outra. Em cada porta de cada velho sobrado, na sua maioria transformados em cortiços, uma, duas, às vezes três prostitutas. Algumas, a maioria, já maltratadas pelos longos anos naquelas calçadas e camas, algumas até que jeitosas, vestidas com saias curtíssimas, perfume barato, lábios e olhos muito pintados. Muitas mexiam com ele. Garoto, vem cá, vou te ensinar umas coisas... Ele apressava o passo, enrubescia, queria sumir, queria aceitar, queria aprender umas coisas...
Mulheres da vida, assim eram chamadas. Na sua rua, uma das moças mais desejadas, inclusive por ele, e que não dava bola pra ninguém, segundo as más línguas das fofoqueiras do bairro, ganhava a vida numa daquelas ruas, Aurora, Vitória, Triunfo, mulher da vida...
Ele imaginava se um dia a veria, numa das portas daqueles cortiços, Ivete, branca como a neve, objeto de desejos inconfessáveis. Se ele a encontra-se por ali, fazendo a vida, como se dizia, como seria? Ela se esconderia? Ou mexeria com ele? Vem cá que vou te ensinar umas coisas...
Sonhava com Ivete, na porta de um dos cortiços da rua dos Andradas, entre a Aurora e a Vitória, de saia curtíssima, mostrando suas coxas brancas, muito brancas, lábios vermelhos, cabelos curtos, como nunca a vira lá pelos lados do bairro operário onde ambos moravam.
Nunca encontrou Ivete na porta de nenhum cortiço. Quem lhe ensinou umas coisas foi Bete, morena de coxas generosas, numa noite em que superou a timidez, perdeu a vergonha, mulheres da vida, e se deixou ficar pelo caminho...
Já na volta, entre cinco e meia e seis da tarde, doze quarteirões, a caminho do ponto do ônibus que o levaria para o colégio onde estudava à noite, a história era outra. Em cada porta de cada velho sobrado, na sua maioria transformados em cortiços, uma, duas, às vezes três prostitutas. Algumas, a maioria, já maltratadas pelos longos anos naquelas calçadas e camas, algumas até que jeitosas, vestidas com saias curtíssimas, perfume barato, lábios e olhos muito pintados. Muitas mexiam com ele. Garoto, vem cá, vou te ensinar umas coisas... Ele apressava o passo, enrubescia, queria sumir, queria aceitar, queria aprender umas coisas...
Mulheres da vida, assim eram chamadas. Na sua rua, uma das moças mais desejadas, inclusive por ele, e que não dava bola pra ninguém, segundo as más línguas das fofoqueiras do bairro, ganhava a vida numa daquelas ruas, Aurora, Vitória, Triunfo, mulher da vida...
Ele imaginava se um dia a veria, numa das portas daqueles cortiços, Ivete, branca como a neve, objeto de desejos inconfessáveis. Se ele a encontra-se por ali, fazendo a vida, como se dizia, como seria? Ela se esconderia? Ou mexeria com ele? Vem cá que vou te ensinar umas coisas...
Sonhava com Ivete, na porta de um dos cortiços da rua dos Andradas, entre a Aurora e a Vitória, de saia curtíssima, mostrando suas coxas brancas, muito brancas, lábios vermelhos, cabelos curtos, como nunca a vira lá pelos lados do bairro operário onde ambos moravam.
Nunca encontrou Ivete na porta de nenhum cortiço. Quem lhe ensinou umas coisas foi Bete, morena de coxas generosas, numa noite em que superou a timidez, perdeu a vergonha, mulheres da vida, e se deixou ficar pelo caminho...
sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
Aqueles olhos verdes
Se ele soubesse o que viria depois teria parado antes. Bem antes.
Tudo começou quando Jolene, “meu pai chamava João e minha mãe chamava Marlene”, ela sempre se apressava em explicar, pediu um cigarro, “aceso, por favor”. Ele estava num inferninho, lá pelos lados da rua Vitória, e nunca tinha visto Jolene, ou Jô, como passou a chamá-la, naquele lugar. Loira de olhos verdes, boca carnuda ressaltada pelo batom excessivamente vermelho, um leve e encantador sotaque nordestino. E os seios que, embora pequenos, se faziam notar, ao arfarem, atrevidos, como se pontuassem o pedido, “aceso, por favor”.
Contou que nascera no Recife, que seus olhos verdes eram de origem holandesa, não, não das invasões holandesas, mas de seu pai, que não era João, era Johann, de Amsterdam, que se apaixonou por sua mãe, entre um frevo e outro, num carnaval que passou, que seu sonho era conhecer a terra de seu pai, estava juntando dinheiro pra isso, que viera para São Paulo porque achava mais fácil juntar dinheiro aqui, afinal aqui é que estava o dinheiro.
Foram parar num daqueles hotéis decadentes da Duque de Caxias, onde passaram a noite falando da vida, quer dizer, só ela falava, e ele não cansava de ouvir aquele encantador sotaque nordestino. Não fizeram sexo, pelo menos aquilo que o senso comum entende por fazer sexo, pois ouvi-la falando, com aquele sotaque encantador, era mais do que fazer sexo. Aquela boca vermelha, aqueles olhos verdes, aqueles pequenos seios arfantes. E aquela voz, aquele sotaque, falando só pra ele, não importa o quê, “aceso, por favor”.
Se apaixonou perdidamente, loucamente, desesperadamente. Repetiram aquela noite durante toda a semana. Toda noite. Às vezes nem entravam no inferninho onde se conheceram. Iam direto para o hotel suspeito. E passavam a madrugada fazendo aquele tipo de sexo que só eles entendiam, feito de sussurros, olhares, seios arfantes, boca vermelha, olhos verdes. E aquele sotaque, “meu Deus, não posso mais viver sem isso...”.
Prometeu que ela nunca mais teria que ganhar a vida naquele inferninho. Prometeu realizar seu sonho. Prometeu largar tudo e levá-la para Amsterdam, onde ela faria sucesso em boates elegantes, com aqueles olhos holandeses e aquele irresistível sotaque como se cantasse um frevo. Ele não sabia mais viver sem aqueles olhos verdes, aqueles pequenos seios arfantes, aquela boca vermelha falando, falando, falando...
Dizem que Jolene foi para Veneza com um nobre italiano, cinqüenta anos mais velho...
No cabaré, alguém canta “aqueles olhos verdes”... ele imagina um leve sotaque nordestino. Pede mais um fernet e um cigarro ao garçom.
Aceso, por favor...
sábado, 15 de dezembro de 2018
Jane Roliúde
Seu
nome de batismo era Jayne. Em homenagem a Jayne Mansfield, a exuberante atriz
de Hollywood que sua mãe adorava. Seu pai não gostou muito do nome, mal sabia
pronunciá-lo, chamava-a de Jane. E essa confusão com seu nome se repetiu pela
vida. Ela sempre corrigia: “Meu nome é Jayne, não Jane. De Jayne Mansfield,
sabe...” E contava a história da paixão de sua mãe pela atriz e de como seu
pai, ignorante, deturpou nome tão lindo.
Em
um certo momento da vida, lá pelos 18, 19 anos, quando se tornou uma das mais
requisitadas dançarinas do Avenida Danças, lá na esquina da Rio Branco com a
Aurora, era conhecida como Jane Roliúde.
O
Avenida era um “taxi-dancing”, instituição muito comum na Boca do Lixo nos anos
1950, em que moças, na maioria das vezes vindo da periferia, ou do interior de
São Paulo, dançavam com os freqüentadores mediante o pagamento de uma módica quantia
em dinheiro. Só que o pagamento não era
feito diretamente a elas. Cada freqüentador tinha um cartão que elas picotavam
a cada dança concedida.
Jane
Rolíude não era exuberante como a musa que inspirou seu nome. Não tinha os
seios fartos da atriz. Jane, ou melhor, Jayne, era magra, mignon, de cabelos
oxigenados, olhos verdes, e uma extraordinária meiguice no rosto infantil. Era
essa meiguice, acho eu, que atraia os homens. E ao mesmo tempo os afastava,
pois era por demais etérea para a insensibilidade masculina, ainda mais
daqueles homens que procuravam uma dançarina de aluguel.
Jane
Roliúde reinou por um bom tempo no Avenida Danças. Quem freqüentou o lugar
naqueles anos quase inocentes com certeza lembrará dela. Até o dia em que Jane
sumiu. Sem aviso, sem motivo aparente, sem notícia, sem até logo. Sem
despedida.
Dizem
que Jane foi atrás de um cafajeste por quem se apaixonou perdidamente. Dizem
que, como bom cafajeste, ele a largou em algum lugar perdido entre um bolero e
outro. Dizem que Jane ficou louca, e perambulava pelas ruas do centro da
cidade, oferecendo uma dança, importunando os transeuntes. Dizem tanta coisa!
Jane Roliúde virou mais uma das lendas da Boca do Lixo.
Um
dia, numa das madrugadas da vida, lá pelos lados da Major Sertório, achei que
vi Jane. Me aproximei. Chamei-a de Jayne. Ela abriu um imenso sorriso no rosto
infantil. Me ofereceu uma dança. Não tive coragem. Covarde, coloquei uma nota
de dinheiro em suas mãos, que seguravam ainda um daqueles cartões picotados.
Deixei
Jayne dançando com um parceiro imaginário. Etérea, suave, com aqueles olhos
verdes e aquela inconfundível meiguice no rosto ainda infantil.
Nunca
mais a vi.
sexta-feira, 26 de outubro de 2018
O personagem
Essa
história estava muito mal contada. Ele nunca estivera num boteco infecto. Nunca
ficara num banquinho escondido lá no fundo do balcão, bebendo rabo-de-galo,
esperando por uma mulher que nunca chegava. Muito pelo contrário. Freqüentara a
boca do luxo, era recebido como um príncipe no La Licorne, se envolvera com
mulheres que dariam tudo, se é que não deram, para tirá-lo da noite e levá-lo,
se não ao altar, pelo menos a uma quitinete no Edifício Copan. Nunca bebeu
rabo-de-galo, quer dizer, lembrava apenas de uma vez, quando foi parar num
cortiço lá pelos lados dos Campos Elíseos, visitando uma tia às portas da
morte, e não pode recusar a bebida, oferecida pela prima, motivo real da
visita, com quem acabou passando a noite num drive-in na avenida do Estado. Na
verdade ele não abria mão do champanhe, nas noites em que a roda de pôquer, lá
no Glicério, lhe era generosa. Como quando um dos jogadores fechou uma quadra
de ás e ele, numa daquelas jogadas impossíveis de fim de noite, encheu a mão e
a alma com um street flash até rei, e ainda por cima de ouros. Naquela
madrugada as meninas do La Licorne, em volta da sua mesa, se afogaram numa
outra dama francesa, La Grande Dame...
Esse
idiota que está contando esta história não sabe nada da minha história, eu é
que sou o personagem, ele não sabe nada do que está contando, acho melhor parar
com isso, eu não vou aceitar essa avacalhação com a minha imagem, com
rabo-de-galo num boteco infecto, esperando por uma mulher que não vem, como se
eu precisasse disso, eu, o príncipe do La LIcorne...
Ouviu
o papel sendo arrancado da máquina, com raiva. O que será que está acontecendo?
Sentiu o papel sendo amassado. Espera aí, vamos conversar. Também não sou
intransigente. Para com isso..
O
papel virou uma bolota. Ele sentiu sufocar, sem espaço, como se seu mundo
estivesse acabando. Teve a sensação de que estava voando. Em seguida parou,
como se batesse em algo sólido. Dentro da bolota de papel, sufocando, sem
espaço, sem boteco, sem balcão, sem champanhe, nem sequer um rabo-de-galo, pode
ouvir o que, para ele, soou como uma sentença de morte:
Não
sei o que fazer com esse personagem. Não rendeu. Amanhã acabo com ele...
terça-feira, 23 de outubro de 2018
A mão esquerda
Acordou
suando. Ao seu lado, na cama, ela olhava para ele, um olhar que ele não
conhecia. Colocou sua mão esquerda no rosto dela. Sentiu o calor de uma
lágrima. E ouviu, como se ainda estivesse sonhando, “precisamos conversar”...
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